segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Coisa de mulherzinha ou Quando a alma grita

Engraçadas essas coisas da alma, né? Tem coisa que você sempre soube, que sabia que estava lá, meio oculta na sombra, mas ali ficou durante anos e anos. E muitas vezes é preciso ajuda, uma lanterna alheia para iluminar a coisa "ensombrada" (vem daí a palavra "assombrada", sem nenhum acaso).
Algo que tenho trazido à luz, que estava louco pra sair do escuro, era um lado mais feminino da alma. Além de eu nunca ter tido uma educação de "prendas" (algo que, de qualquer modo, já não era tão comum entre as meninas da minha geração), desde cedo tive minha sensibilidade e minha criatividade cerceadas pela figura paterna. Para me adequar/sobreviver, sempre mostrei meu lado mais forte, combativo - que é ótimo, que me ajudou a ir mais longe do que talvez fosse de outra forma. Mas que não sou eu inteira.
Aí, de uns tempos para cá, a alma começou a fazer barulho. Muito barulho. A mandar mensagens misteriosas (lembrei de O mundo de Sofia!) que me faziam ter vontade, de uma hora para outra, de dançar. Eu, que nunca fiz balé e afins. Algo que nunca desejei? Não - sempre achei lindíssimo, sempre me pegou pelo ventre, não o balé, mas danças mais terra a terra como o flamenco. E de repente fui fazer uma aula, pensando comigo mesma: se não levar jeito, tudo bem, desisto. Afinal, levo jeito? Na verdade, não me preocupo mais com isso, nem penso em ser bailaora, mas AMO quando consigo olhar só para dentro de mim, quando a imagem no espelho vai desaparecendo, tudo ao redor vai se esvaindo e só ouço os sons dos tacones e sinto os movimentos dos meus braços, pernas, cintura.
A alma, porém, continuou seu ruído: ela queria mais. E lá fui eu fazer sumiê - uma busca até então inconsciente da ancestralidade, talvez a parte mais yin dessa minha ancestralidade, já que a outra parte era tão presente e tão afirmativa, yang mesmo. Descobri/entendi de onde vinha um tipo de comportamento, encontrei uma atividade que me obrigava a respirar, a esvaziar a mente, a ficar completamente presente. Assumi minha habilidade-sem-técnica manual, artística.
Alguns dias depois, outra mensagem misteriosa: quero bordar! Fui ao armarinho, como já contei aqui, e, munida de meadas e agulhas, me pus a inventar coisas, ainda sem nenhuma técnica. Um ponto de cada vez, e as imagens foram se formando. Para meu espanto, ouvi dizer que estava bonito. Outra atividade que me colocou em contato comigo mesma, mas que agora trazia à tona minha criatividade. Claro que é angustiante que o flamboyant demore tanto a ficar pronto, mas criar não é algo que esvazia: parece um olho d'água rompendo o solo seco e se transformando em um fio, um rio, um mar. Lavando, nutrindo, comunicando.
Não por acaso, isso foi aparecendo quando comecei a dar mais valor à minha intuição, a perceber o que a vida estava me dizendo. Coisa de mulherzinha. E quanto ainda há a perceber, entender, mais que "aprender". Quanto mais sei sobre mim, sobre meus tesouros enterrados, mais sei sobre o outro, sobre as "civilizações" que são diferentes da minha. Acho que agora começo a entender, a ouvir o grito da minha alma, e da alma do outro protestando quando uso a minha medida para avaliar os seus valores. Já não acredito mais em alteridade, que seja possível se colocar no lugar do outro, mas acredito cada vez mais no encontro, que, quando desejado e completo, é algo maravilhoso.

2 comentários:

  1. Q, bom q. sua alma também é rebelde e q. gritou com a intensidade necessária pra vc ouvir os gritos. Seu texto mostra q. não foi só vc q. ganhou com eles. Ganhamos nós, pelo texto, e pelas transformações q. vc tem vivido, q. ecoaram tb aqui! em Atibaia em um pouco em cada parte do mundo!! Bj

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    1. Que delícia, que bom saber que a transformação pessoal positiva afeta positivamente (opa, não é que afetar tem a ver com afeto?) os amigos, mesmo à distância! E esse carinho revelado reverbera em mim também. :D
      beijos!

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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