terça-feira, 20 de março de 2018

Like a girrrrrrrl

Eu ia fazer um post sobre o dia da mulher. Mas a oportunidade da data passou. E aconteceu tanta coisa terrível e/ou louca nos últimos dias que o tom se tornou mais sombrio, embora não menos aguerrido.

Marielle
Poucos dias depois do dia da mulher, Marielle Franco, vereadora carioca defensora dos direitos humanos, sobretudo de negros, mulheres e público LGBT, foi exterminada no interior de um carro quando voltava de um evento público.
Tão terrível quanto a sensação de perda de uma semelhante - perda para o machismo, para a violência, para o sistema político opressor - e do retrocesso de direitos tão duramente conquistados, foi ver a reação de pessoas conhecidas. No grupo de WhatsApp do colégio, os homens retrucavam que a morte dela era uma arma da esquerda, que estava "politizando" o fato quando morrem tantas pessoas, tão importantes quanto ela, todos os dias. O esvaziamento da morte, do sentido dessa morte, só esfrega na nossa cara o fundo do poço a que chegamos.
Marielle era pobre, negra, mãe solteira e bissexual. Mesmo assim, com todos esses poréns, com esses estigmas, estava entre os cinco vereadores mais votados do Rio de Janeiro na última eleição. Moradora da Maré, foi a primeira representante de uma comunidade na Câmara. Estudou Sociologia na PUC com bolsa integral e fez pós-graduação em Administração Pública na UFF. Era defensora dos direitos humanos, não só de "bandidos", como se está dizendo por aí, mas de todas as pessoas violentadas em seus direitos, como um policial morto cuja família recorreu a ela, porque ninguém mais lhe prestou ajuda. A morte de Marielle representa o silenciamento de muitos que puderam, graças a ela, ter uma voz. Que esses muitos e muitos de nós não se deixem derrotar, e façam dessa falta, dessa fome um motivo para lutar.

Vídeo sobre desigualdade salarial entre gêneros
No mesmo famigerado grupo de WhatsApp do colégio, minha sorella Karen postou um vídeo fofo que anda circulando nas redes, que mostra a necessidade de condições salariais iguais para homens e mulheres. Duplas formadas por um menino e uma menina realizam uma tarefa. Ao final, cada dupla recebe sua recompensa, um pote de doces para cada um. O pote das meninas contém bem menos doces que o dos parceiros. O instrutor pergunta a cada dupla se sabe por que as meninas receberam menos, e revela que é porque elas são meninas. Os garotos mostram surpresa e as meninas, indignação. A conclusão da existência da desigualdade de gêneros fez o grupo do colégio, tão falante e opinioso no caso de Marielle (que estavam chamando de Mirella), se calar. Cricricri. Medo da polêmica? Medo de discordar do óbvio? Medo de "parecer" machista?
Só sei que achei o silêncio masculino um estrondo, mas o silêncio feminino foi um escândalo.

Jacqueline
Ainda por esses dias, peguei já iniciado um documentário no Canal Brasil, "Meu nome é Jacque", sobre a ativista de direitos LGBT Jacqueline Rocha Côrtes, transexual e soropositiva. Despretensioso, parece ser a história de uma dona de casa comum. Aos poucos você descobre uma mulher num corpo de homem, lutando para se libertar, graças a Deus com o apoio incondicional da família, especialmente da mãe. Uma mulher que consegue ser quem é e que passa a ajudar milhares de pessoas em suas lutas (sim, no plural, porque são muitas lutas) pela individuação. Jacque chega a ser uma liderança na ONU, mas prefere ir viver com o marido em Araruama. Ao fim do documentário, descobrimos que ela consegue realizar o sonho de ser mãe, adotando dois irmãos. Tão merecedora de tudo que conquistou, Jacque alegrou meu coração numa semana de contrasensos e evidências tristes. 


Tudo isso é sobre mulheres. Sobre lutas diárias contra o machismo, contra a desigualdade, a violência. O embate se torna maior porque muitas de nós têm despertado para essa tradição inventada da mulher-menos, da mulher-contra-mulher. Há muito mais sufragistas de causas diversas hoje, com esse despertar feminino. Sim, estamos aprendendo a lutar como garotas, e quanta força há nisso!
No dia da mulher propriamente dito, vi muitas mensagens prontas de gente que condenou Marielle, que não entendeu a história dos potes desiguais de doces, que cuspiria em Jacque se a encontrasse na rua. Muito julgamento, pouco entendimento. Muita hipocrisia, nenhuma empatia. Deve ser por isso que há tanto movimento nos céus, com satélites e meteoros despencando. 
Mas nós seguimos avançando sob a noite escura.

Créditos: As três fotos foram retiradas da internet, sem identificação de autoria.

2 comentários:

  1. Ótima reflexão e ótimas referências, Sol! Já viu Uma mulher fantástica? Assisti no dia da mulher, achei bem doído. Acho que o filme tem esse mérito: o de colocar o espectador meio que na pele da personagem... ainda sobre mulheres e opressão, série genial: Handmaid's tale. Não apenas sobre opressão da mulher na sociedade, mas também sobre como nasce o fascismo. Muito apropriado para o momento. Beijos!

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    1. Si, quero muito ver esse filme! Vou ter que baixar, mas está na minha lista. O conto da aia, andei procurando o livro na Amazon, estava esgotado. Vivo a fase, que espero que não termine, das leituras femininas de mundo, minhas e de todas. beijo enorme!

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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